30 outubro 2008

Fotografias no Margs

O trabalho da mestranda Marina Chiapinotto, integrante do GPJor, pode ser conferido até 30 de novembro na Sala Berta-Locatelli, no Margs, em Porto Alegre, na mostra fotográfica Imagens Gaúchas. A mostra reúne fotografias de 37 fotógrafos do grupo RBS, sob a tônica características do povo gaúcho. Além da exposição, 242 fotografias compõem os três volumes do painel sobre o Rio Grande do Sul, publicado na obra Imagens Gaúchas, lançado na abertura da exposição, dia 28 de outubro. As fotos publicadas nos jornais Zero Hora, Diário Gaúcho, Diário de Santa Maria e Pioneiro formam os três volumes - Costumes e Cultura, Paisagens e Tradições - impressos em formato 18x22cm e edição bilíngüe (português e inglês). A mostra Imagens Gaúchas seguirá depois para as cidades de Santa Maria e Caxias do Sul.
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(Angela Zamin)

19 outubro 2008

O xerife da ética

Sob o título “O xerife da ética” a reportagem, publicada na edição do dia 25 de junho de 2008 da revista Veja, aborda de uma maneira um tanto escrachada a vida pregressa do atual presidente do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, Sérgio Moraes. Deputado do PTB gaúcho, já foi acusado de receptação de jóias roubadas entre outros crimes amplamente escancarados na matéria. Com o Congresso Nacional desmoralizado perante a opinião pública pelos sucessivos escândalos de corrupção de seus pares, Sérgio Moraes, que era dono de uma boate e já foi condenado por envolvimento em rede de prostituição, parece estar na casa certa, hão de pensar a maioria dos leitores da revista.
Longe de defender o político como vítima inocente da imprensa, o fato de recapitular um passado negro em ano de eleições não me causa tamanho estranhamento como a forma com que o texto foi conduzido, sem ser tratado com notória seriedade. A repercussão, num sentido de sensacionalização do tema, deu muito certo: a edição da revista esgotou em Santa Cruz do Sul, cidade onde foi iniciada a trajetória do deputado cuja esposa, Kelly Moraes, concorre à prefeitura este ano também pelo PTB. Nos bairros da cidade, políticos ligados ao grupo de situação reproduziram as páginas de Veja e distribuíram entre os moradores; na internet, versões escaneadas circulavam por e-mails como verdadeiras correntes.
O fato crucial é que nem sequer foram aprofundadas questões mais reflexivas acerca do tema, imprescindíveis na composição de uma reportagem nos moldes jornalísticos: as informações discorridas rapidamente, verdadeiras enxurradas de picaretagem e corrupção, mais se parecem com uma ficha na polícia. Uma abordagem das implicações do passado negro e da conduta do político para com o parlamento ficou em aberto. Oras, ninguém é eleito para um dos postos mais importantes da Câmara dos Deputados sem a concessão de terceiros, vozes silenciadas no texto. Além da própria figura central da matéria, apenas duas outras fontes secundárias foram entrevistadas e a elas dedicadas apenas duas frases. Por fim, a reportagem encerra com uma entrevista transcrita parcialmente. Uma entrevista séria deveria tomar muito tempo, o que não acontece na matéria em questão. Mesmo tendo o entrevistado solicitado a publicação na íntegra de seus dizeres, apenas uma pequena parte, quiçá o trecho mais explosivo, teve o mérito de estampar meia página. Seguindo os moldes citados por Umberto Eco em Cinco Escritos Morais, o jornalista estimula a imprudência do deputado. Dentro de uma dinâmica muito parecida com as dos talk-shows, Morais revela seu baixo nível em linguajares repletos de palavrões e ameaças ao entrevistador e à própria Veja. A entrevista deixa de ser cautelosa para transformar-se em algo pitoresco e imediatista. Prato cheio para quem adora saborear apenas mais um capítulo da desmoralização do cenário político brasileiro.

(Grace Bender Azambuja)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.

clicrbs/vidafeminina e o vulto lilás dos acontecimentos

Rio Grande do Sul, final do Séc. XIX. É neste cenário, e com o empenho do Centro Positivista de Porto Alegre em divulgar as idéias de Auguste Comte, que circulou em 1894, no jornal Mercantil (DEL PRIORI, 2000), um texto que exaltava as qualidades essenciais de uma mulher, nos seguintes termos:
"Quem é esse nobre vulto (....)? é a mulher mãe!"
"Quem é esse vulto formoso (....)? é a mulher virgem!"
"Quem é aquela figura sublime (....)? é a mulher esposa!"
"Quem é aquele vulto amoroso (....)? é a mulher filha!"
Rio Grande do Sul, início do Séc. XXI. O cenário é lilás, chama-se Vida Feminina, e é uma sessão do Portal de noticias clicrbs.com.br, cujo conteúdo esta organizado sob os seguintes temas:“Sempre aqui: Moda e Estilo, Saúde e Beleza, Comportamento, Casa e Família, Vida Profissional” e ainda “Sua Vida Feminina: Dúvidas entre os lençóis, Terapeuta Virtual, Testes, Enquetes, Mural, Promoções”.
O que distancia e o que aproxima estes dois cenários? O que os aproxima são as formas tradicionais e naturalizadas de tratar as questões do universo feminino, e podem ser caracterizados em termos de rupturas e permanências. Rupturas, ainda que tímidas, porque estes vultos tomaram corpo e não há como não reconhecer a presença feminina no espaço público, ainda que as condições possam ser questionadas. Mas as permanências são marcantes: ora explícitas, ora sutis, reproduzem discursos sobre os papéis femininos, identificando a mulher como um ser complementar ao homem. As duas épocas revelam uma sociedade que busca prescrever condutas, modelar atitudes e disciplinar os interesses femininos, orientando-as para os papéis de esposa e mãe. A permanência também se revela enquanto uma prática da imprensa, que sempre teve a preocupação de oferecer espaços para Correios Sentimentais, Aconselhamento e Testes, reforçando a representação da mulher como um ser que necessita ser guiado e revelando a descrença na sua autonomia. Estes espaços que sempre figuraram em nossos jornais e revistas, um exemplo é o Jornal das Moças de 1950 (Del Priori, 2000), se atualizam na internet, e mais, se apropriam de referências construídas pelas lutas feministas, como o uso da cor lilás, que é a cor símbolo do feminismo, e está estampada no clicrbs. Mas seu conteúdo permanece e continua reproduzindo uma moral que destina para a mulher o lugar de vulto do homem, de alguém que pode “figurar” na vida do namorado, marido e dos filhos, mas não ocupa o lugar central. Barthes (1972) em sua análise sobre os correios sentimentais revela esta “condição de parasita” que a sociedade prescreve para a mulher e mostra, ainda, o lugar destas práticas na manutenção da ordem social estabelecida. Entre 1894 e 2008 muita coisa se rompeu. Entre 1894 e 2008 muita coisa permaneceu. Unindo estes dois cenários está o alerta feminista de que “o pessoal é político" e que uma vida feminina vai muito além das horas que uma mulher possa passar entre fraldas e mamadeiras ou sob os lençóis. Esta mulher está em frente ao espelho que reflete, mais do que sua aparência, contornos bem nítidos do vulto que tomou forma e se fez visível.

(Vera Martins)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.

... disse TNYTimes, segundo El Tiempo, ou quando um jornal é fonte de outro

Um jornal pautado por outro, não por um acontecimento, uma fonte ou uma agência de notícia. Um fenômeno que Umberto Eco já identificava no final dos anos 1990. Em ‘Cinco escritos morais’ alerta que “[...] cada vez mais a imprensa fala da própria imprensa” (ECO, 1997, p.78). Ainda, “cada vez é mais freqüente o desmentido de quem diz que não deu nenhuma declaração ao jornal A, seguido da resposta do jornalista que sustenta ter lido a afirmação em uma entrevista do jornal B, sem se preocupar se o jornal B tirou a notícia indiretamente do jornal C” (ECO, 1997, p.78). Enquanto isso, a Folha de S. Paulo, referência do jornalismo brasileiro, em seu Manual de Redação (2001), a exemplo de outros jornais e manuais, segue advertindo que um jornal não pode ser fonte exclusiva de outro para uma informação.
O editorial de um jornal é replicado, sob forma de notícia, em outro – se é que se pode colocar em ‘gavetas’ distintas opinião e informação. É o The New York Times que diz não ao terceiro mandato do presidente colombiano, Álvaro Uribe – “Colombia’s president, Álvaro Uribe, should tell his friends that he does not want a third term” –. Publicado na véspera, o editorial do Times serve de aporte ao jornal El Tiempo, diário produzido desde Bogotá. TNYTimes assinala, critica, adverte, reconhece. El Tiempo reproduz, usa aspas, limitando-se vez ou outra a atribuir valor – “señala 'The New York Times' en duro editorial”. O Times ascende a fonte.
TNYTimes, que “tem uma enorme influência” não apenas no jornalismo estadunidense, conforme assinala Molina (2007, p.111), “é o meio de comunicação mais consultado pelos outros meio”: “o noticiário das redes de televisão fazem sua pauta a partir do Times. E os jornais locais também” (MOLINA, 2007, 111).
Times, em seu editorial, lança algumas considerações que merecem um como ou por que, afinal está se referindo ao presidente de cujo país El Tiempo é o jornal de maior circulação, mas o jornal colombiano não se dá ao trabalho de refletir, ao contrário repete. Times diz: “The region needs democracy, underpinned by strong institutions”. El Tiempo simplesmente usa aspas e repete: “La región necesita una democracia que se afinque en instituciones fuertes” – mas afinal, elas não o são? por que não? Times diz mais e El Tiempo segue repetindo: Uribe demonstrou “muy poco respeto por las instituciones de la democracia colombiana” – quando? de que forma? em que momentos de seu governo?
Claro, El Tiempo usa aspas e isso o exime de ser responsabilizado por tais afirmações, que em verdade não são suas, mesmo que delas compartilhe, o que não acredito, uma vez que é considerado um jornal alinhado com o governo de Uribe. Assim, ao usar aspas e reproduzir a fala do outro jornal, da fonte The New York Times, El Tiempo exime-se também de, por uma análise sobre a conjuntura política, fazer pensar sobre.
TNYTimes, que “é possivelmente o jornal mais influente do mundo” (MOLINA, 2007, p.156) , ao concluir seu editorial, apresenta duas possibilidades ao presidente colombiano – permanecer ou não no poder: “Mr. Uribe’s Choice” –, sem deixar de emitir valor a cada uma delas. Se Uribe abrir mão de um terceiro mandato, diz Times e reproduz El Tiempo “será recordado como el líder que sacó a Colombia del precipicio y la puso en la ruta de la paz”. Por outro lado, se continuar no poder “manchará su legado y debilitará el sistema de pesos y contrapesos, esenciales para la democracia colombiana”. Ou, o que deve pesar mais na decisão de Uribe se permanecer será comparado aos latino-americanos Chavez-Evo-Correa. TNYTimes simplifica os governos de Uribe e de Chaves-Evo-Correa pela velha dicotomia bom-mau. Ao menos aí, Times não encontra, de todo, eco na caixa de ressonância de El Tiempo, que só faz menção à Venezuela de Chaves.
El Tiempo traz, para comentar o que TNYTimes discute, um ex-assessor presidencial e um ex magistrado da Corte Surprema. A reflexão, por sua vez, pauta o próprio jornalismo. Um dos ‘ex’ diz: “No veo por qué hay que obligar”; o outro ‘ex’ lamenta “las consecuencias que puede tener para el país la imagen que empieza a formarse en el exterior”. E o jornalismo segue fazendo-se entender como aquele que tudo pode. Pode dizer “no a nueva reelección”. Pode dizer, ainda, “Uribe debe dejar claro ya que este será su último período”. Por seus dizeres o jornalismo revela a si e a discursos de outra ordem, de outro lugar, da política, da economia etc. Por apropriações e reconversões o jornalismo objetiva tão somente o reconhecimento do presente.

(Angela Zamin)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.

16 outubro 2008

Brasil de Fato: a imprensa de esquerda no fio da navalha

Jornais de esquerda, ao que parece, sofrem de uma crise de identidade crônica. O leitor é o militante político ou a população em geral? O jornal informa, forma ou mobiliza? Como dialogar com o maior número possível de leitores, sem ser superficial? Como manter a linha política, sem ser panfletário?
O debate não é novo. Vladimir Lenin postulava a escritura de textos voltados à formação política da classe operária, “que tem necessidade de conhecimentos políticos amplos e vivos”. Por sua vez, Leon Trotsky defendia a aproximação com temas do cotidiano dos trabalhadores. “Um jornal não tem direito de não se interessar pelo que interes¬se às massas, à multidão operária”, dizia.
O jornal Brasil de Fato, representante da imprensa popular-alternativa, vinculado a movimentos sociais, também parece viver a sua crise. É um pouco híbrido, operando no fio da navalha: demarca claramente sua linha política, apresentando-se como portador de “uma visão popular do Brasil e do mundo”. Mas lança mão de práticas da imprensa tradicional para, possivelmente, adquirir um verniz de profissionalismo que o aproxime do leitor médio.
É o que se pode verificar a partir da análise das reportagens da editoria “Brasil” da edição 288 do jornal Brasil de Fato, de 10 de setembro de 2008.
Nota-se, claramente, uma tentativa de afastar-se de um certo ranço próprio da imprensa de esquerda, acostumada a tratar de temas duros e voltados exclusivamente aos interesses do grupo político ao qual pertence. Na contracapa, por exemplo, o jornal traz uma matéria sobre os Jogos Olímpicos e conta a história de um grupo de samba de roda de São Paulo.
Também é possível perceber a busca por compreender o momento sócio-histórico do País, evitando as costumeiras odes aos operários, comum a este tipo de imprensa. O chileno Guillermo Sunkel produziu uma bela análise de jornais de esquerda no seu país, criticando sua visão reducionista da política e do popular: os jornais só consideravam relevantes os contextos em que operário industrial, único agente da transformação social, aparecia em processos de conflito com o patrão, ignorando assim a diversidade, a riqueza e as contradições da vida cotidiana dos trabalhadores.
O Brasil de Fato, na edição analisada, empreende um necessário esforço para compreender o País ao abrir-se para o tema do sistema carcerário, ao mesmo tempo em que dá voz a grupos sociais esquecidos pela imprensa, como as mulheres camponesas e as comunidades indígenas.
Mas é justamente neste movimento de abertura que o jornal, talvez por ter mais “intimidade” com temas estritamente ligados a movimentos sociais do campo, aos quais está vinculado, acaba reproduzindo práticas da grande imprensa.
A utilização de especialistas para avalizar uma tese a ser comprovada pelo jornal, por exemplo, é recorrente no Brasil de Fato. Nesta edição que analisamos, podemos citar três matérias em que o especialista é chamado a referendar algo que talvez o próprio jornal quisesse dizer: o jornal chama “especialistas que participaram de gestões municipais” para falar da reforma urbana, cobre um encontro em que “Especialistas debatem sistema carcerário” e, ainda, entrevista o jornalista esportivo Juca Kfouri para criticar a política para o esporte no Brasil. Patrick Charaudeau, em “Discurso das Mídias”, chama a atenção para os critérios (notoriedade, representatividade, expressão e polêmica) pelos quais determinados atores sociais são chamados a ocupar o espaço midiático.
Boa parte dos estudos acadêmicos sobre os quais viemos nos debruçando adotam um viés pouco crítico em relação à imprensa popular-alternativa, de modo a exaltar a importância da comunicação contra-hegemônica no processo democrático. Defendemos que a crítica à imprensa, coerente e compromissada, é uma forma de pensar inclusive a sobrevivência e a centralidade dos veículos alternativos diante das transformações na sociedade. Dilatar o presente para pensar um futuro real, de utopias concretas, como nos sugere Boaventura de Sousa Santos.

(Daniel Barbosa Cassol)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.

09 outubro 2008

Encontro de outubro

No próximo encontro do GPJor, dia 22 de outubro, às 14h, discutiremos os textos:
- BAUDRILLARD, Jean. A greve dos acontecimentos. In: A ilusão do fim ou a greve dos acontecimentos. Lisboa: terramar, 1992. p.37-46.
- MOUILLAUD, Maurice. Crítica do acontecimento ou o fato em questão. In: MOUILLAUD, Maurice et al. O jornal da forma ao sentido. Brasília: Paralelo 15, 1997. p.49-85.
Até lá.

(Angela Zamin)

01 outubro 2008

Jornalismo transgênico nos jornais da RBS

O sociólogo norte-americano Edward Ross foi pioneiro ao denunciar, em 1910, o poder dos anunciantes sobre o jornalismo. Chamou de “vacas sagradas” as empresas ou instituições que, amparadas na renda publicitária que proporcionavam aos jornais, adquiriam também o “direito” de impedir a publicação de notícias que lhes fossem desfavoráveis. Em 1944, ao cunhar o conceito de indústria cultural, os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer registraram que a publicidade e suas técnicas haviam invadido o jornalismo de tal forma que, para o leitor, já era difícil distinguir entre anúncios e notícias em algumas publicações. Em 2003, o jornalista brasileiro Leandro Marshall sintetizou na expressão “jornalismo transgênico” o estágio alcançado pela simbiose entre jornalismo e publicidade, revelando-a e classificando-a em 25 variações ou “mutações genéticas”. Algumas dessas variações são facilmente identificáveis numa breve análise de seis espécimes – colhidos no mesmo dia: 7 de agosto de 2008, uma quinta-feira – da produção da maior empresa jornalística do Sul do país, a RBS.
As páginas do jornais Zero Hora, Pioneiro e Diário de Santa Maria, do Rio Grande do Sul, e Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina e A Notícia, de Santa Catarina, são férteis exemplos dessa transgenia. Seus cadernos ou seções de veículos, especialmente, revelam-se o terreno mais viçoso, com abundância de casos de Composição (notícias apresentadas com caráter publicitário, com títulos generosos como “Sofisticado e inovador”, “Além da expectativa”, “Conjunto eficiente e esportivo”), Casamento fechado (notícia e anúncio sobre o produto noticiado publicados na mesma página) e Casamento aberto (notícia e anúncio publicados em páginas diferentes), de acordo com a classificação de Marshall. Uma ou mais dessas categorias aparecem nos seis jornais analisados, mas destaca-se nos três jornais catarinenses o casamento notícia-anúncio: na mesma edição em que chamam o carro Citröen C3 de “Evolução natural” com “Conceitos renovados” em seus títulos, os periódicos contam, cada um, com anúncio colorido de duas páginas centrais da revenda Citröen. Publicadas nos seis jornais da RBS, as matérias sobre o novo Citröen são, na verdade, uma só, produzida por Zero Hora e reproduzida com mínimas variações pelos demais periódicos – um bom indicativo do baixo custo e da conseqüente alta rentabilidade do jornalismo transgênico.
Entre os jornais gaúchos, destacam-se dois exemplos de transgenia. O primeiro é do Pioneiro, que traz encartado um guia olímpico de Pequim. Nele, uma página é dedicada – com justiça jornalística, reconheça-se – ao judoca João Derly. A transgenia está no fato de Derly aparecer em seis anúncios coloridos de rodapé do mesmo guia, como garoto-propaganda de um plano de saúde, e ainda numa conveniente matéria sobre marketing esportivo publicada na seção de Economia, no corpo do jornal – matéria que tem como fonte um diretor do já citado plano de saúde e como única fotografia a de João Derly. O conjunto, na classificação de Marshall, ganha distinções transgênicas por Condicionamento (quando a publicidade condiciona a linha editorial), Editorialismo (publicidade acompanhada de material editorial elogioso ao anunciante), Mimese (publicidade paga, disfarçada de notícia, no caso da matéria do corpo do jornal), Merchandising (evocação intencional de uma empresa ou marca no espaço editorial) e Ambigüidade (notícia sobre anúncio publicitário, no caso da matéria sobre o patrocínio do plano de saúde a João Derly).
O segundo exemplo trata do que Marshall chama de Dirigismo (produção de notícia pelo setor comercial de uma empresa jornalística) e está apenas indicado pelo Diário de Santa Maria. Um anúncio do jornal informa ao leitor sobre a publicação, no dia seguinte, do Caderno de Saúde, com matérias sobre “Atividade física e qualidade de vida” e “benefícios da equoterapia”. Em letras miúdas, o anúncio complementa a informação: o caderno é “uma publicação do Departamento Comercial do Diário de Santa Maria”. Ou seja: antes de estar preocupado com a saúde do leitor, o jornal está preocupado com sua própria saúde – neste caso, financeira.
Exemplos como esses – e muitos outros podem ser retirados da mesma amostragem – indicam que Ross tinha motivos para se preocupar com o dia em que a publicidade ameaçaria “deixar na sombra a comunicação de notícias” e ajudam a entender por que Adorno e Horkheimer consideravam a publicidade o “elixir da vida” da indústria cultural. No campo do jornalismo, a transgenia publicitária parece estar plenamente integrada à produção.

(Felipe Boff)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.