Jornais de esquerda, ao que parece, sofrem de uma crise de identidade crônica. O leitor é o militante político ou a população em geral? O jornal informa, forma ou mobiliza? Como dialogar com o maior número possível de leitores, sem ser superficial? Como manter a linha política, sem ser panfletário?
O debate não é novo. Vladimir Lenin postulava a escritura de textos voltados à formação política da classe operária, “que tem necessidade de conhecimentos políticos amplos e vivos”. Por sua vez, Leon Trotsky defendia a aproximação com temas do cotidiano dos trabalhadores. “Um jornal não tem direito de não se interessar pelo que interes¬se às massas, à multidão operária”, dizia.
O jornal Brasil de Fato, representante da imprensa popular-alternativa, vinculado a movimentos sociais, também parece viver a sua crise. É um pouco híbrido, operando no fio da navalha: demarca claramente sua linha política, apresentando-se como portador de “uma visão popular do Brasil e do mundo”. Mas lança mão de práticas da imprensa tradicional para, possivelmente, adquirir um verniz de profissionalismo que o aproxime do leitor médio.
É o que se pode verificar a partir da análise das reportagens da editoria “Brasil” da edição 288 do jornal Brasil de Fato, de 10 de setembro de 2008.
Nota-se, claramente, uma tentativa de afastar-se de um certo ranço próprio da imprensa de esquerda, acostumada a tratar de temas duros e voltados exclusivamente aos interesses do grupo político ao qual pertence. Na contracapa, por exemplo, o jornal traz uma matéria sobre os Jogos Olímpicos e conta a história de um grupo de samba de roda de São Paulo.
Também é possível perceber a busca por compreender o momento sócio-histórico do País, evitando as costumeiras odes aos operários, comum a este tipo de imprensa. O chileno Guillermo Sunkel produziu uma bela análise de jornais de esquerda no seu país, criticando sua visão reducionista da política e do popular: os jornais só consideravam relevantes os contextos em que operário industrial, único agente da transformação social, aparecia em processos de conflito com o patrão, ignorando assim a diversidade, a riqueza e as contradições da vida cotidiana dos trabalhadores.
O Brasil de Fato, na edição analisada, empreende um necessário esforço para compreender o País ao abrir-se para o tema do sistema carcerário, ao mesmo tempo em que dá voz a grupos sociais esquecidos pela imprensa, como as mulheres camponesas e as comunidades indígenas.
Mas é justamente neste movimento de abertura que o jornal, talvez por ter mais “intimidade” com temas estritamente ligados a movimentos sociais do campo, aos quais está vinculado, acaba reproduzindo práticas da grande imprensa.
A utilização de especialistas para avalizar uma tese a ser comprovada pelo jornal, por exemplo, é recorrente no Brasil de Fato. Nesta edição que analisamos, podemos citar três matérias em que o especialista é chamado a referendar algo que talvez o próprio jornal quisesse dizer: o jornal chama “especialistas que participaram de gestões municipais” para falar da reforma urbana, cobre um encontro em que “Especialistas debatem sistema carcerário” e, ainda, entrevista o jornalista esportivo Juca Kfouri para criticar a política para o esporte no Brasil. Patrick Charaudeau, em “Discurso das Mídias”, chama a atenção para os critérios (notoriedade, representatividade, expressão e polêmica) pelos quais determinados atores sociais são chamados a ocupar o espaço midiático.
Boa parte dos estudos acadêmicos sobre os quais viemos nos debruçando adotam um viés pouco crítico em relação à imprensa popular-alternativa, de modo a exaltar a importância da comunicação contra-hegemônica no processo democrático. Defendemos que a crítica à imprensa, coerente e compromissada, é uma forma de pensar inclusive a sobrevivência e a centralidade dos veículos alternativos diante das transformações na sociedade. Dilatar o presente para pensar um futuro real, de utopias concretas, como nos sugere Boaventura de Sousa Santos.
(Daniel Barbosa Cassol)
* Texto apresentado na disciplina de Crítica das Práticas Jornalísticas.
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