A crítica aos meios de comunicação insere-se, na sua maioria, no contexto de responsabilizá-los por sua atuação. Os argumentos utilizados são focados em problemas recorrentes, como descumprimento do pluralismo, noção básica do jornalismo, conduta que falta à ética ou que se utiliza largamente de artifícios sensacionais e mesmo falta de independência editorial frente a outros campos concorrentes ao jornalístico. Pela compreensão de que a vigilância às práticas da mídia deve ser constante é que relatamos o caso a seguir, ocorrido no mês de setembro de 2008, e que reapareceu no final do ano, época em que são realizadas as retrospectivas dos fatos marcantes do período.
O episódio singular aconteceu no interior gaúcho e chamou a atenção da mídia do país inteiro. Um ladrão de carros, após furtar um veículo na principal avenida da cidade de Passo Fundo, a 300 km de Porto Alegre, constatou a existência de uma criança de 5 anos no interior do automóvel e deu início a um fato inusitado: procurou um orelhão e telefonou para a Brigada Militar informando o roubo e avisando o endereço onde estaria abandonando o veículo com a criança. Como se não bastasse, pediu aos policiais para que repassassem um recado malcriado aos pais do menino, ameaçando-os de morte. Na mensagem, gravada e disponibilizada pela Brigada Militar para ser amplamente divulgada pela mídia, o ladrão demonstrou-se indignado pela irresponsabilidade dos que deveriam zelar pela criança, que a deixaram dormindo enquanto encontravam-se com alguns amigos em um bar.
Por sua singularidade, o fato apresenta valor-notícia para ser reproduzido pelos veículos de comunicação, sem dúvida. Entretanto, o registro discursivo realizado fez com que nos dias subseqüentes ao acontecido, a população da cidade interiorana de 200 mil habitantes comentasse a respeito do “ladrão do bem”, do “bandido herói” e chegasse ao extremo de tratá-lo como “o nosso ladrão” em comentários de sites, cartas e e-mails endereçados e posteriormente publicados pelos veículos de comunicação. E o comportamento não foi adotado apenas pelos jornais, emissoras de rádio e televisão locais, mas também pela mídia nacional, que tratou o inusitado com amplo destaque durante os dias seguintes.
O alarde da mídia contou com o aval de declarações da delegada da Polícia Civil, Claudia Crusius, que afirmou na ocasião não pretender pedir a prisão do ladrão. Disse ela que o “rapaz teve bom senso” e que sua atitude a levou a manter a “esperança na humanidade”, discurso logo alterado quando da prisão do bandido, cinco dias depois, após uma seqüência de três assaltos.
Observar este comportamento da mídia nos permite uma compreensão de como os critérios de noticiabilidade, em alguns casos, acabam por desviá-la da possibilidade de provocar uma reflexão concreta de âmbito social e, quiçá, alguma mudança positiva na forma de agir da sociedade. A forma como foi materializado discursivamente o acontecimento citado, num primeiro momento, fez com que a grande maioria dos leitores da notícia pretendessem saudar o ladrão por seu ato de bondade perante o abandono da criança pelos pais. O mesmo abandono que inclusive soube-se, posteriormente, era recorrente na família, mas que, assim como a seqüência de assaltos cometida pelo malandro nos dias posteriores, não mereceu, na opinião da mídia, o mesmo espaço destinado à proclamação do ‘ladrão do bem’.
Michel Foucault, quando perguntado sobre o que é a crítica, parte do princípio de que esta possa ser a arte de não ser governado, de ter uma direção de consciência isenta. Poderíamos nos perguntar, assim como Foucault, a partir da construção de uma realidade em que ladrões não são mais tratados como bandidos, mas sim como pessoas dotadas de ética, caráter e bom senso, de que forma podemos não ser governados por este jornalismo, por este tipo de princípios aos quais o jornalismo hoje está vinculado?
(Maria Joana Chaise)